O problema que as pessoas têm com a verdade



Ela pesava cerca de cem quilos e não passava dos um e sessenta e cinco de altura. Toda vez que ela ia comprar roupas naquela loja do centro, seu rosto enrubescia quando a vendedora perguntava o tamanho. Ela odiava pegar ônibus. Havia algo de muito errado com aquela catraca. Houve aquela festa em que a cadeira de plástico cedeu depois que ela se sentou. Naquele momento, ela quis morrer. Ela não quis chamar o moço bonito do trabalho para bater um papo no bar no dia do seu aniversário. Tinha certeza de que ele se recusaria, afinal, ele nunca olhava para ela, mesmo ela ocupando um espaço enorme quando passava. Ontem ela caminhava pela rua. Passou em frente a uma academia nova de ginástica (bem perto da sua casa). O moço da divulgação estava na entrada e disse que passar por aquela porta poderia mudar a vida dela. Que audácia a dele! Como se a vida dela precisasse de mudanças. Ela só queria que as pessoas a aceitassem do jeito que ela era.
Ele tinha acabado de completar vinte e oito anos e ainda não tinha arrumado um emprego. Quando ele tinha seus dezessete anos, decidiu que a sociedade era hipócrita e não fazia questão de participar dela. Ele, basicamente, usava preto e um jeans velho para quebrar a “monocor”. Sentava todas as noites na mesinha de xadrez da praça e dividia uma garrafa 500ml de cachaça com os companheiros da revolução. Com o tempo, a garrafa passou para 2 litros e ele já começava a reunião às quatro horas da tarde. Teve só uma namorada, não muito o tipo que todo mundo olhava quando ela passava. Nos seus vinte e cinco anos, virou pai e a mulher começou um discurso de responsabilidade. Ele estava sentado de novo na mesinha de xadrez depois de uma tarde entregando currículos. Era sua rotina nos últimos seis meses. Olhava as pessoas de sempre passando pela praça e olhando torto quando o notavam. Naquele momento, ele teve certeza de que tinha razão nos seus dezessete anos. A sociedade era mesmo hipócrita. Ele passara a vida inteira lutando contra isso, mas a sociedade continuava virando as costas para ele. Pensava neste mundo sem cura enquanto virava mais uma dose daquela garrafa de dois litros.
Ela acordava de segunda a sexta às cinco e meia da manhã. Precisava pegar dois ônibus para chegar ao trabalho às oito. Com a pressa, acabava esquecendo de dizer oi no trajeto do corredor e se sentava correndo na escrivaninha. Basicamente, atendia o telefone e transferia as ligações. Quando tinha oito anos, queria ser atriz. Com doze, decidiu ser veterinária. Aos dezoito, não tinha dinheiro, então acabou virando secretária. Ainda queria cuidar de bichos. Se contentava com seus dois gatos. Colecionava chaveiros e diários. Sempre teve problemas em se abrir, portanto escrevia o que não conseguia desabafar. Ainda se lembrava do seu primeiro amor, Carlos do segundo ano, por quem foi apaixonada por quase cinco anos. Acabou nunca dizendo o quanto gostava dele, já era suficiente observá-lo todos os dias no intervalo ou quando passava em frente a sua casa. Às vezes sentia falta de alguém, mas esse tipo de sorte não era seu forte. Hoje era sexta-feira, felizmente véspera de sábado. Ela usava a mesma blusa de cor neutra, calça preta e cabelo amarrado. Olhava o pessoal do setor ao lado combinar um show para o fim de semana. Ela até queria ir, gostava de música, mas não ia se oferecer, afinal, era falta de educação. E não entendia muito bem por que, mas eles sempre se esqueciam de chamá-la. Talvez porque ela trabalhasse ali, na recepção, com pouco acesso aos outros setores. Depois das seis, caminhava sozinha para casa. Parou um ponto antes do de sempre para passar na locadora. Não gostava de estar só, mas isso não era uma opção. Sempre teve problemas de relacionamento. As pessoas simplesmente não a entendiam. “O Diário de Bridget Jones” deve ser um bom filme...

By Sam Silva |

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Uma das coisas que aprendi é que se deve viver APESAR DE.
Apesar de, se deve comer.
Apesar de, se deve amar.
Apesar de, se deve morrer.
Inlcusive muitas vezes é o próprio APESAR DE que nos empurra para a frente.
Foi o APESAR DE que me deu uma angústia que, insatisfeita, foi a criadora da minha própria vida.

Clarice Lispector

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